A Maria José Campos não gosta dos holofotes da ribalta. Passou por mim – e, atrevo-me, por alguns de nós – qual sombra visceralmente iluminada por uma luz natural, que nos conduz sem nunca nos incandescer. Mas ela guia, tal como me guiou no dia em que nos conhecemos. Eu no meu papel de paciente e ela na sua função – ou melhor dizendo, na sua mais profunda e sentida dedicação -, enquanto médica. Nesse dia, do fundo da sua assumida perplexidade, revelou-me que eu era a primeira trans a entrar na sua consulta, depois de ter sido a primeira médica a ter a coragem de me olhar nos olhos. “Eu sei que vocês existem, vejo-vos nas vossas performances, mas é como se não existissem na vida real”.
Em 1995, não existia prevenção direccionada que estivesse relacionada com o VIH e com a SIDA. Não existiam manifestações, nem movimentos associativos LGBT e muito menos reivindicações. Naquele tempo, era mais uma questão de sobrevivência do que de reivindicação. Mas existia já uma cidadã que estava – e se manteve – na base de tudo o que se veio a desenvolver posteriormente. Foi vice-presidente da associação Abraço. Em 1997, foi mentora e coordenadora do primeiro projecto europeu de investigação relacionado com a existência, hábitos e saúde da população trans em Portugal. A Maria José Campos foi uma impulsionadora fundamental na criação do Festival Gay e Lésbico de Lisboa. Ela foi mentora, mecenas e tantas outras coisas, quando foram criados a associação ILGA-Portugal, o primeiro grupo trans (Grupo de Apoio Trans) dentro dessa mesma associação, e ainda a primeira associação Trans em Portugal, a @t. A Maria José participou e apoiou tantos outros projectos e causas mais recentes, como o CheckpointLX, o acesso à PrEP, a legalização da canábis e de outras drogas bem como o acesso ao tratamento da Hepatite C. Outras pessoas tomaram as rédeas – mas algumas delas esqueceram-se da fundação dos alicerces.
Se alguma vez tive a veleidade de me considerar activista, o mérito é dela. Foi com a Maria José Campos que aprendi a destrinçar entre a importância da defesa dos direitos fundamentais de determinadas causas, independentemente das minhas opiniões pessoais sobre as matérias em causa. Com ela, fizemos viagens inesquecíveis de trabalho, outras de descanso ou de compras (o que ela detesta). Entre as quais, a viagem com a velha caravana, em pleno Inverno, que era suposto vir a fazer prevenção junto das trabalhadoras de sexo em Lisboa. Corria o ano de 1998/99?
Foi com ela que interviemos a nível internacional, quando as questões trans se limitavam à cor das plumas que levavam ao pescoço os pavões desnorteados e famintos da tão necessitada assimilação e respectivos holofotes – que, pelo menos, tanto ela como eu, nunca almejámos. Antes pelo contrário, enganámo-nos olimpicamente no objectivo inicial, porque muito do que assistimos posteriormente foi um desrespeito, senão desprezo total, na defesa pelo direito à diferença.
Penso que a fama de mau feitio que a precede deve-se mais a uma protecção fundamental, para melhor absorver os embates das derrotas que tamanha dedicação acarreta. E porque, profundamente humanitária e respeitadora do indivíduo, ela é desprovida de qualquer forma de julgamento.
A Maria José faz parte daquele grupo restrito de pessoas que me fazem querer ser como elas. Aquelas pessoas que me inspiraram a lutar, como elas, pela convicção, dedicação e perseverança humanitária que sempre demonstraram. Queria ter estado à altura da Maria José Campos, mas isso é pura utopia minha.
Jó Bernardo gosta da luz de Lisboa e do anonimato de Paris.
Maria José Campos é médica e vive em Campo de Ourique.
Ilustração de André Murraças.